Governança Corporativa: a falta de boas práticas de uma grande empresa

Quem foi às compras após o dia 12 de janeiro talvez tenha notado uma alteração nos prazos de parcelamento com compras efetuadas por meio de cartão de crédito. Alguns dias antes, o parcelamento, a depender da loja e do produto, podia ser feito em até cinco vezes. Eletroeletrônicos e informática em até dez vezes. Pelo menos em duas lojas (confecção e informática), que efetuei compras, o parcelamento máximo foi de duas vezes.

De imediato imaginei ser efeito das “inconsistências contábeis” e do tal “risco sacado”, o que me pareceu lógico, embora dependa de confirmar, que os fornecedores descartaram os prazos de pagamento maiores que 60 dias e também a antecipação de crédito por parte de bancos, coisas que estão presentes no rombo da Americanas. O motivo pode ser precaução ou mesmo trabalhar com risco mínimo. A confirmar essa inferência.

A questão é que as pessoas que foram impactadas pelo caso da Americanas não estão no mercado de capitais, onde se sabe que o risco é constante, ou na direção acionária da Americanas. Eles estão em toda a cadeia de abastecimento de produtos de todas as lojas de varejo e representam, defendem e lutam, por anos, para dar às suas famílias a decência mínima de uma vida confortável.

O que me leva a entender que o que ocorre com a Americanas tem como causa um forte desrespeito à Governança Corporativa, principalmente a uma ética organizacional, à ética em relação ao próximo e à vida comum, direito de todo cidadão. Se formos consultar o site da empresa, veremos lá que todos os componentes das boas práticas de Governança Corporativa estão presentes, inclusive porque o propósito definido diz clara e concisamente que a Americanas deseja “somar o que o mundo tem de bom para melhorar a vida das pessoas”.

Falta de boas práticas de Governança Corporativa 

Para uma empresa é indispensável uma cultura ética que centralize os princípios e os valores presentes na Governança Corporativa, como fundamento de seu propósito, valores e princípios. Ou, conforme defende o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), ter ética “como o conjunto de valores que orienta a conduta, viabiliza o convívio e evolução do ser humano em sociedades crescentemente complexas”. 

Para o IBGC, a ética se estrutura a partir do “senso de coletividade e interdependência que impulsiona os indivíduos a colaborarem com o desenvolvimento da sociedade, direcionando à busca do bem comum”. E, complementa: “na origem da governança corporativa, esses valores e princípios éticos foram traduzidos para as empresas com o objetivo primordial de proteger os sócios contra fraudes, abusos e conflitos de interesse entres os agentes de governança”.

As Lojas Americanas também dizem cumprir os parâmetros do ESG, sigla que representa comprometimento com práticas decentes em relação ao meio ambiente, ao papel e responsabilidade perante à sociedade e a governança configurada e estruturada conforme os princípios de Integridade, Transparência, Equidade, Responsabilidade Corporativa e de Sustentabilidade.

Ora, lá atrás foi dito que a Americanas registra em seu site todos os elementos e pilares que lhe garantam uma boa estrutura de governança corporativa e do ESG, inclusive porque, como empresa listada no Novo Mercado da B3, tais condições lhe são praticamente obrigatórias.

Entretanto, a julgar pelo que até agora temos conhecimento, seja pelo que saiu na imprensa, seja pelos comentários de analistas financeiros, de mercado e empresariais, algo não funcionou bem na governança das Lojas Americanas e, evidente, caberá a Justiça e aos novos dirigentes da empresa, concluírem o que de efetivo ocorreu. Para quem tem a Governança Corporativa, a Gestão de Risco e o Compliance como norteadores, as Lojas Americanas vinham praticando o que chamamos de Ethical Washing.

Elaborou um bom discurso, definiu um propósito interessante, porém, na prática, manteve uma fraude contábil por muitos anos. Essa fraude trouxe, agora com certeza, antes provavelmente, danos irrecuperáveis para fornecedores, os quais, ainda que tenham tido ciência das práticas abusivas e equivocadas que vinham sendo praticadas, dependiam da empresa para que integrassem o mercado produtivo do nosso País.

A reputação não se constrói sem critérios e com inverdades

Há relatos de empresas que faliram e seus proprietários perderam tudo porque as Lojas Americanas atrasaram pagamentos e encerraram contratos sem a previsão de prazo estabelecida em cláusulas contratuais. 

Aliás, as Lojas Americanas eram exigentes com seus fornecedores. Vejam essa informação colhida do site da empresa: “Exigimos de nossos fornecedores críticos a certificação do Programa ABVTEX e a conformidade com a auditoria realizada pela DNV GL. Em 2021, 100% dos novos fornecedores de Marcas Próprias foram selecionados com base em critérios socioambientais”. 

Passados quatro semanas do anúncio sobre o rombo de R$ 20 bilhões nas Lojas Americanas e mesmo com o mundo um pouco ainda tentando descobrir o que aconteceu e o que poderá acontecer, apesar de muita incerteza, algumas coisas podemos acreditar. Primeiro, houve fraude e faltou controle interno e externo de auditorias para sua detecção em tempo hábil que evitasse chegar ao valor que chegou (o valor da dívida da empresa já superou R$40 bilhões). A informação é que a prática se realizou ao longo de, pelo menos, sete anos. A julgar pelo envolvimento de um grupo acionista (30,12% do total de ações) em outras “inconveniências contábeis” (ALL, Kraft Heinz), fraude era uma prática contumaz. 

O indicativo melhor é a busca pelo resultado sobre qualquer hipótese nas empresas controladas pelo grupo, o que está claro no site das Lojas Americanas: buscar a excelência na operação, fazer mais e melhor a cada dia, ser obcecado por resultados.

Mesmo que no Código de Conduta da companhia esteja registrado que as decisões passam pela resposta NÃO a algumas questões que precisam ser respondidas, entre elas: É legal? É ético? Está de acordo com a Cultura Corporativa? Contribuirá de forma positiva para mim e para a imagem da empresa? A obsessão por resultados parece predominar nas decisões adotadas. 

O mesmo Código de Conduta determina como responsabilidade de todos garantir que os registros comerciais e financeiros sejam exatos, pois a exatidão é elemento essencial para a reputação e a credibilidade das Americanas S.A, como forma, inclusive, de assegurar o cumprimento das obrigações legais dela e dos parceiros de negócio. 

Vejam uma parte do texto a respeito: “Sempre registre e classifique as transações no período contábil apropriado e na conta de departamento corretos. Não atrase nem acelere o registro de receitas ou despesas para atingir objetivos de orçamento. Orçamentos e balanços devem ser sustentados pela documentação apropriada. Não distorça a natureza real de nenhuma transação”. Tem mais, sobre manipulação de resultados: “A Americanas S.A. reza pela exatidão de todos os seus registros. É imprescindível que todas as informações reflitam o cenário real, de forma completa, organizada e confiável”. 

A manipulação de informações e/ou resultados não será permitida em hipótese alguma. A excelência na gestão dos registros permite que a Americanas tome decisões de forma mais consciente e eficaz, e cumpra com suas obrigações legais”.

O que aconteceu com as Americanas?

Com certeza, além da fraude e suas consequências, o que precisa ser mais bem apurado, uma clara e evidente despreocupação com a reputação conquistada. A reputação de uma organização decorre de conceitos, reconhecimentos, experiências positivas conquistadas ao longo de muito tempo, seja pela correção de conduta e comportamento moral e ética da empresa e de seus dirigentes, pela participação junto à sociedade, pela qualidade dos produtos e serviços. 

Podemos agregar à boa reputação, a participação, defesa e apoio a causas ambientais e sociais, combate à fraude e à corrupção (de todos os tipos), como resumo das boas práticas de Governança Corporativa e a transformação cultural necessária para a adoção do modelo ESG. A importância da reputação positiva é a percepção que impacta indiscutivelmente o volume de negócios, conquista de mais participação no mercado e o estabelecimento de um vínculo consistente com seus clientes (Americanas conquistou esse vínculo). 

O relatório “Tendências da experiência do cliente 2021”, da empresa Zendesk, por exemplo, indica que 54% dos clientes fazem sua opção de compra dos produtos das empresas que priorizam a diversidade, a equidade e a inclusão em suas comunidades locais de trabalho. Cerca de 60% dos consumidores compram de companhias que possuem responsabilidade social, evidência de que o público avalia outros fatores além do preço e qualidade do produto. 

Se considerarmos o ativismo que o mercado consumidor exerce de forma crescente, esses percentuais devem ser bem maiores em 2023. Um dado pode contribuir para que as Lojas Americanas consigam superar essa crise, evidentemente se isso for possível. Relaciona-se à reputação: regra geral, os clientes de uma organização são fiéis a ela, se ela possuir boa reputação, mesmo que ela enfrente crises ao longo de sua existência. 

Como já dito, parece que as Lojas Americanas possuem boa reputação. A fraude pode comprometer, mas vale o registro da possibilidade. Entretanto, vai depender das decisões que os novos dirigentes da companhia tomem para proteger essa valiosa marca e seus valores. A Americanas faz parte de nossa história!

Escrito por Claudio Luiz de Carvalho.